quarta-feira, 7 de maio de 2008

técnica e afecto

a propósito da programação de dança do Rivoli (e um pouco mais) . publicado em Cadernos Rivoli nº 4, 2004 . obrigado Cristina, pelos espectáculos e pela oportunidade de publicar o texto



1. Sei pouco sobre dança ou, dito de outra forma, sobre a) a história da "dança", e sobre b) o modo como, desde há já quase um século, os contornos variáveis do seu território instrumental/significante/expressivo vão sendo experimentados. Sinto-me com certeza mais estimulado por este segundo aspecto, em detrimento da eventual centralidade do primeiro, porque nele a questão técnica (entenda-se aqui técnica enquanto matriz normativa de concepção/interpretação) tende a ocupar um lugar subordinado, a favor da construção livre de coerências, de conjunturas.


2. Como no teatro (mais habitualmente no que respeita à interpretação ou à exibição do improviso) ou no cinema (mais habitualmente no que respeita à narrativa), julgo que na dança a expressão da dor, por si mesma, é redundante. Desprezo a ideia fascista de "arte degenerada", do mesmo modo que não encontro qualquer interesse na pura expressão de estados psíquicos dolorosos. O movimento do corpo pode sustentar modalidades expressivas de grande síntese (potencialmente mais sintéticas do que a construção de discurso ou de uma narrativa), mas quando o nível da expressão compulsiva do eu não é ultrapassado, a síntese toma a forma da mera "coreografia psicanalítica": o mergulho no inconsciente, através do mais empobrecido auto-centrismo, dá – afinal – azo à alienação da comunicabilidade (a comunicabilidade pressupõe a consideração do receptor). A temática do "corpo" é particularmente propícia à confusão entre arte e terapia emocional (o possível onanismo dos diários íntimos, psico-drama ou catarses várias).


3. Comoventes, os sacos de plástico brancos a moverem-se no ar, num espectáculo de Les Ballets C. de la B., no Rivoli.


4. Lembro-me de ouvir alguém lamentar-se, no final do espectáculo Chinoiserie de Mathilde Monnier, apresentado pelo Rivoli no Ballet-Teatro em 1995, relativamente à falta de rigor da interpretação da coreógrafa/bailarina. De facto, o mais relevante do espectáculo não seria o virtuosismo. Assistiu-se, em dois tempos consecutivos, aos movimentos de alguém que, como se estivesse em sua casa (não sei se o tapete que ocupava o pavimento, único elemento do "cenário", tinha o propósito de recriar um espaço doméstico), parecia entreter-se precisamente a experimentar esses movimentos, primeiro sem, depois com a inter-acção de uma lanterna fixa a uma coxa. Pareceu-me esta elementaridade emocionante. Tomei esta (pelo menos aparente) espontaneidade como um manifesto sobre a possibilidade de comunicação em dança.


(O magistral Once de Anne Teresa De Keersmaeker, recentemente apresentado no Rivoli, apesar das devidas diferenças, também tinha um pouco este tom.)


5. [...] antes de perguntar: como se relaciona a poesia com as relações produtivas da época, gostaria de perguntar: como se situa nela? O objectivo imediato desta questão é determinar a função que a obra assume nas relações de produção da escrita numa época. Por outras palavras, o seu objectivo é a técnica escrita da obra. Designo o conceito de técnica como aquele que, nos produtos literários, torna acessível uma análise imediata e materialista da sociedade. (1)


6. Tive oportunidade de conhecer Olga Mesa no Citemor de 2004. No Verão, o ambiente informal e fértil do festival de Montemor-o-Velho foi propício a encontros à mesa do café. Foi então que vi o espectáculo On cherche une danse. Foi também uma experiência emocionante. Em Dezembro, no CCB, assisti ainda a Suite au dernier mot: Au fond tout est en surface (um espectáculo, na verdade, anterior ao primeiro).


Revelar a fenomenologia do acontecimento cénico não será nada de surpreendentemente novo. No âmbito das "artes plásticas", e como culminar de uma genealogia que remonta à década de 10 do século XX, a revelação dos mecanismos inerentes à prática artística que, por tradição, permanecem invisíveis (quer os de natureza física/instrumental que são escrupulosamente ocultados, quer aqueles de ordem abstracta, designadamente institucional, implicados na prática e no consumo da arte) ou a evidência da dimensão sensitiva da comunicação através da obra são atributos da arte conceptual dos anos de 1965-1975. Mas se os dois espectáculos de Olga Mesa parecem estar próximos deste objectivo, verifica-se que neles se produz uma deslocação, do âmbito mais estritamente analítico, para o âmbito do afecto. Artistas/intérpretes e público tornam-se, nestes espectáculos, o centro de situações que (muitas vezes despoletadas pela locução intimista, sem pathos, da própria criadora, como se de uma conversa se tratasse) fazem coincidir a desnudez/consciencialização dos aspectos técnicos (a técnica, segundo Benjamin) do espectáculo, com a dimensão emocional dos seus agentes. O que é apresentado ao público não constitui, nem uma – extremada – dissecação desconcertante dos fenómenos, nem uma tentativa de criar uma – extremada – empatia ingénua entre emissor e receptor. Em vez disso, o público é levado à experiência sensível do fenómeno-espectáculo: é levado a re-vivenciar a experiência do espectáculo – naquilo que de mais banal ela possa conter – intensamente. Interior/exterior da sala, interior/exterior da cena (entre ver e ser visto), executante/observante, directo/diferido, fazer/mostrar, entre outras dicotomias, transformam-se assim em lugares de afecto. E podem juntar-se-lhe outras dicotomias: memória/acção individuais, grave/terno, pudor/exposição, público/íntimo, epiderme/miniatura,... au fond tout est en surface.


José Capela



(1) Walter BENJAMIN, ‘O Autor enquanto Produtor’, trad. Maria Luz Moita, in Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política, Lisboa: Relógio d’Água, 1992, pp. 139-140.

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