terça-feira, 15 de abril de 2008

mala voadora

A mala voadora foi fundada por Jorge Andrade e José Capela, responsáveis pela direcção artística da companhia. Apresentámos o nosso primeiro espectáculo em 2003 e, desde então, produzimos 10 espectáculos, 4 dos quais subsidiados pelo Ministério da Cultura. Nas 3 primeiras produções trabalhámos com os encenadores Rogério de Carvalho, João Mota e Miguel Loureiro. Ainda partindo de um texto dramático, o espectáculo seguinte, Os Justos de A. Camus, foi encenado por Jorge Andrade (menção honrosa do Prémio Madalena Azeredo Perdigão 2004, atribuído pela F. C. Gulbenkian), fazendo coincidir as tentativas do grupo de revolucionários de levar a bom termo o ataque terrorista com as tentativas dos actores de ensaiarem a peça. Desde então ainda não voltámos a adoptar uma peça de teatro como ponto de partida para fazer um espectáculo. Se, quando se parte de uma peça, a dramaturgia tende a traduzir-se em matizes interpretativos e poéticos desenvolvidos em torno desse texto (ou paralelamente a ele), temos ensaiado antes a partir da diversidade das relações que podem ser estabelecidas entre, por um lado, as temáticas que pretendemos transportar para a cena e, por outro, o tipo de procedimentos a adoptar com vista à definição do espectáculo. Juntamente com cada tema, definimos uma maneira de fazer, um enunciado operativo que tenha ele próprio um significado dramatúrgico convergente com esse tema. E em função disso, escolhemos a especificidade profissional dos membros de cada equipa de trabalho, e chegamos a um dispositivo cénico adequado à resolução formal do espectáculo.


Em philatélie partiu-se de uma pequena colecção de selos; uma historiadora investigou sobre vários deles, produziu-se um texto e o espectáculo foi operado ao vivo, tendo como protagonistas os próprios selos. Em projecto de execução partiu-se da relação de amizade entre um grupo de 3 mulheres (mais concretamente, do registo de uma série de 3 jantares entre elas) para enunciar e experimentar, no espectáculo, as várias dimensões sensitivas da realidade e da sua deslocação para a cena. Em hard I+II, bem como em hard III, partiu-se de ensaios, documentários e notícias para abordar dois componentes relevantes da espectacularidade contemporânea: a violência e as catástrofes. Em hard I, sobre violência, chegou-se a um conjunto de situações performativas em torno de uma célula familiar (a escala do ínfimo/íntimo). Hard II tinha o formato de uma visita guiada a um museu de catástrofes em miniatura (a escala do que é vasto). Em hard III introduziu-se o tema do turismo e o espectáculo desenvolvia-se em torno do transporte de bagagens que, progressivamente, iam formando uma paisagem. Para o espectáculo infantil teatro-postal, uma série de postais de viagem serviu de pretexto para, em cena, evidenciar a alteridade permitida pelo teatro e os componentes da sua construção. Em desempacotando a minha biblioteca, depois da interpretação do ensaio de Walter Benjamin sobre os livros que deu o título ao espectáculo, procedia-se a uma série de tentativas, invariavelmente frustradas, de transpor excertos dos livros de uma biblioteca para o teatro.


Não procuramos que os vários espectáculos apresentem, entre si, uma unidade formal. Focar a criatividade em enunciados operativos, na invenção de modos de fazer, faz com que a linguagem tenda a ser uma mera consequência das decisões de ordem dramatúrgica. Não nos interessam as linguagens, nem as limpas, nem as sujas. E permite também abandonar as hierarquias relativas aos constituintes do espectáculo. O texto, por exemplo, pode constituir ponto de partida, pode resultar do processo de trabalho ou pode nunca chegar a ser necessário. O mesmo é verdadeiro no que respeita à cenografia, à luz, ao vídeo, à música, aos figurinos, ou a qualquer outra coisa que se revele pertinente num determinado projecto. Em todos os trabalhos, começamos sempre por definir o tema com objectividade, ainda que não pretendamos que essa objectividade conduza a “espectáculos de tese” e ela sirva apenas de suporte ou de estrutura ao processo criativo. Muitas vezes começamos por uma fase de recolha de informação que pode ter uma duração e uma importância significativas. Os “ensaios de mesa” tendem a prolongar-se. As sessões colectivas de trabalho servem mais para chegar à ideia de formalização do espectáculo do que, já na cena, para ensaiar a partir de uma ideia preestabelecida ou do puro improviso. Por isso, a fase de ensaios de mesa tende a prolongar-se até ao ponto em que o espectáculo já está esboçado. Às vezes, depois disso, quase nada resta senão executar o que se definiu. (Nem sempre é assim: quando fizemos o espectáculo desempacotando a minha biblioteca, tudo, e designadamente o texto, foi decidido a partir de continuadas experiências de representação.)


Sabemos que o teatro dito independente (como a arte em geral) é consumido por uma franja de público quantitativamente insignificante. Não lhe cabe mudar o mundo, nem propiciar a redenção. Genericamente, interessa-nos fazer um teatro que tenha a ver com o quotidiano, nas suas dimensões política e afectiva. Preferimos o confronto com o que é real à fuga para zonas mais fantasiosas ou nostálgicas, à exacerbação de universos pessoais, ou à abstracção metafísica. E preferimo-lo a temáticas centradas no próprio teatro, e a processos de sublimação ou desconstrução do fenómeno teatral. O teatro é para ser usado e não afirmado. Assim como não acreditamos num teatro sem teoria, também não nos interessa encontrar uma qualquer “essência” que defina o teatro. A nossa definição de teatro é remetida para aquilo que resultar da adopção dos materiais ou processos que, no momento, nos parecerem social e artisticamente pertinentes. Esse alheamento em relação aos protocolos da prática do teatro (tendencialmente conservadores) tem sido também um modo de criar, no interior dessa mesma prática, um campo de teorização. Em vez de o definir, interessa-nos confrontar o teatro com as contingências da produção cultural genérica que contextualizam e condicionam a sua prática e a sua leitura. A iconografia (em philatélie), a espectacularidade da violência e das catástrofes (nos vários hard), ou o conteúdo dos livros (em desempacotando a minha biblioteca) são exemplos de ingredientes da cultura alargada (designadamente visual) na qual se inclui o teatro enquanto comunicação. Tem sido essa a nossa ideia de auto-reflexividade, baseada na constatação de que a realidade que contextualiza o teatro enquanto prática é a mesma do quotidiano de onde provêm os temas adoptados nos projectos.


À maneira de Brecht, a arte deve confrontar-se com a banalidade do seu tempo.

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